Sergio Pardal Freudenthal é advogado e professor universitário, especialista em Direito Previdenciário, atua há mais de três décadas em Sindicatos de Trabalhadores na Baixada Santista.

Era meu pai

Berlim, Alemanha, 1933. Nascia Kurt Freudenthal. Para infelicidade do recém-nascido e de toda a humanidade, o nazismo iniciava sua tenebrosa caminhada. Cinco anos depois, Kurt e seu irmão...

Berlim, Alemanha, 1933. Nascia Kurt Freudenthal. Para infelicidade do recém-nascido e de toda a humanidade, o nazismo iniciava sua tenebrosa caminhada. Cinco anos depois, Kurt e seu irmão vieram para o Brasil, trazidos por meu avô. A mãe já os havia abandonado. O pai resistiu até 1938 porque acreditava que era um alemão judeu, mas, para a tirania nazifascista, ele era um judeu alemão, que não merecia ser cidadão. Chegaram em São Paulo nos tempos de pré-guerra e lá se estabeleceram.
Meu velho lutou a vida toda, sempre trabalhador e até um tanto aventureiro. Foi marido e pai presente o tempo todo. Fui o filho do meio, e, que me desculpem meus irmãos – o mais velho, Pardal original, e a caçula Katia –, mas eu dei trabalho. Nasci avariado, nos ossos, coração, pulmão e intestino, mas quanto mais trabalho eu dava, mais meu pai me amava. Mudamos para Santos, com a receita do médico para o filho mais estropiado: “largue o garoto pelado na praia”. Assim foi.
No comércio ou como advogado, Kurt sempre manteve o seu caráter, sua dignidade e generosidade. A Papelaria Primo Ferreira começou em frente ao colégio do mesmo nome e foi referência como papelaria de bairro. Kurt, com afinco, fez crescer seu comércio, chegando a quatro lojas, uma delas no atacado, atendendo papelarias e bazares da região. Os reinícios escolares eram tempos de grande movimento, animação duradoura por todos os períodos de atividade colegiais; até que os supermercados passaram a vender de tudo. Trabalhamos juntos sempre que foi necessário.
Na advocacia, Kurt atuou em vários campos judiciais e extrajudiciais, desde contratos, sucessões, contendas familiares ou de transações, áreas do Direito das quais o filho fugiu. Poliglota, trabalhou bastante em questões internacionais. Com o alemão de origem e o português por adoção, dominava muito bem o inglês e ainda arranhava espanhol, francês e italiano. Do hebraico recordava um pouco. Adorava viajar, especialmente a serviço.
Chegando aos 91 anos, a velhice havia causado algum desconforto, inclusive pela falta da maior parte de seus amigos, que já não estavam entre nós. De qualquer forma, continuava mantendo a tranquilidade e o humor, apesar de perder a mobilidade e, aos poucos, a memória.
Despediu-se no último dia 15 de julho, e o filho que deu muito trabalho, ateu escrevinhador, realizou seu funeral nos ritos judaicos, sem muitas obrigações, como ele havia desejado. Foi uma cerimônia íntima, simples e no mesmo dia do falecimento, interpretando as regras conforme as condições exigiam. Todos, filhos, netos e bisnetos, glorificamos, por meio do ritual do kadish, a sua vida de lutas e dificuldades, mas com muitas realizações.
Era meu pai.