Era meu pai
Berlim, Alemanha, 1933. Nascia Kurt Freudenthal. Para infelicidade do recém-nascido e de toda a humanidade, o nazismo iniciava sua tenebrosa caminhada. Cinco anos depois, Kurt e seu irmão...
Berlim, Alemanha, 1933. Nascia Kurt Freudenthal. Para infelicidade do recém-nascido e de toda a humanidade, o nazismo iniciava sua tenebrosa caminhada. Cinco anos depois, Kurt e seu irmão vieram para o Brasil, trazidos por meu avô. A mãe já os havia abandonado. O pai resistiu até 1938 porque acreditava que era um alemão judeu, mas, para a tirania nazifascista, ele era um judeu alemão, que não merecia ser cidadão. Chegaram em São Paulo nos tempos de pré-guerra e lá se estabeleceram.
Meu velho lutou a vida toda, sempre trabalhador e até um tanto aventureiro. Foi marido e pai presente o tempo todo. Fui o filho do meio, e, que me desculpem meus irmãos – o mais velho, Pardal original, e a caçula Katia –, mas eu dei trabalho. Nasci avariado, nos ossos, coração, pulmão e intestino, mas quanto mais trabalho eu dava, mais meu pai me amava. Mudamos para Santos, com a receita do médico para o filho mais estropiado: “largue o garoto pelado na praia”. Assim foi.
No comércio ou como advogado, Kurt sempre manteve o seu caráter, sua dignidade e generosidade. A Papelaria Primo Ferreira começou em frente ao colégio do mesmo nome e foi referência como papelaria de bairro. Kurt, com afinco, fez crescer seu comércio, chegando a quatro lojas, uma delas no atacado, atendendo papelarias e bazares da região. Os reinícios escolares eram tempos de grande movimento, animação duradoura por todos os períodos de atividade colegiais; até que os supermercados passaram a vender de tudo. Trabalhamos juntos sempre que foi necessário.
Na advocacia, Kurt atuou em vários campos judiciais e extrajudiciais, desde contratos, sucessões, contendas familiares ou de transações, áreas do Direito das quais o filho fugiu. Poliglota, trabalhou bastante em questões internacionais. Com o alemão de origem e o português por adoção, dominava muito bem o inglês e ainda arranhava espanhol, francês e italiano. Do hebraico recordava um pouco. Adorava viajar, especialmente a serviço.
Chegando aos 91 anos, a velhice havia causado algum desconforto, inclusive pela falta da maior parte de seus amigos, que já não estavam entre nós. De qualquer forma, continuava mantendo a tranquilidade e o humor, apesar de perder a mobilidade e, aos poucos, a memória.
Despediu-se no último dia 15 de julho, e o filho que deu muito trabalho, ateu escrevinhador, realizou seu funeral nos ritos judaicos, sem muitas obrigações, como ele havia desejado. Foi uma cerimônia íntima, simples e no mesmo dia do falecimento, interpretando as regras conforme as condições exigiam. Todos, filhos, netos e bisnetos, glorificamos, por meio do ritual do kadish, a sua vida de lutas e dificuldades, mas com muitas realizações.
Era meu pai.